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terça-feira, 15 de novembro de 2011

Um currículo de autoconhecimento, re-educação interpessoal e cultivo espiritual

Por Claudio Naranjo

“A pergunta que mais freqüentemente nos fazemos é ”que?”: Que matérias devemos ensinar? Quando a conversação se faz mais profunda, passamos a nos perguntar pelo como: que métodos e técnicas são necessárias para ensinar bem? Ocasionalmente, quando se faz ainda mais profunda, chegamos a perguntar o por quê: Com que propósito e para que ensinamos? Porém raramente perguntamos pelo quem: Como pode a qualidade do meu ser determinar a maneira como me relaciono com meus estudantes, meu tema meus colegas,
meu mundo?”
G. Leonard, Op. Cit.

É costume começar dizendo que temos muito prazer de estar entre os presentes e, apesar de eu às vezes recorrer a fórmulas convencionais, a ocasião é tão especial para mim que não posso deixar de mencioná-lo. Quando recebi o convite telefônico de Hugo Diamante, disse-lhe que o tema da educação me acalora e, agora, ao encontrar-me aqui, vejo que este é um dos congressos mais vivos dos que já assisti, tanto pelo que está sendo dito como pela forma que se está recebendo o que é dito. Além disso, creio que a estas alturas da vida tenho algo importante para compartilhar com os educadores, pois me sinto como quem, sem saber, esteve trabalhando durante muitos anos na elaboração de algo que, de pronto, aparece como um invento socialmente útil de uma maneira diferente da que havia imaginado. Explicando melhor: trabalhando na formação de terapeutas aperfeiçoei um programa altamente potente de desenvolvimento humano que bem poderia preencher o vazio que tão lamentavelmente sofre a formação de professores no tocante ao autoconhecimento, relações humanas e vida contemplativa.

Vou seguir o exemplo de alguns que falaram antes de mim, como o Dr. Janis Rozé e Fernando Flores, e contextualizando as idéias que vou expressar, contarei a história do trabalho que venho fazendo, que começou como um trabalho psicológico e espiritual com buscadores, orientou-se posteriormente para a formação de terapeutas, e suspeito que vá alcançar sua máxima utilidade como complemento na atual formação de pedagogos.

Posso começar esta história com a época em que me coube viajar para a Califórnia pela primeira vez e conhecer o Instituto Esalen. Eu era um jovem psiquiatra que trabalhava em um novo departamento da Escola de Medicina da Universidade do Chile, o Centro de Estudos de
Antropologia Médica, destinado a mitigar o conhecido processo de desumanização que a educação médica tradicional produz nos estudantes. Porém, mais que nada, eu mesmo era o que me caracterizou através da maior parte da minha vida: um buscador.

Hoje, o Instituto Esalen é bastante conhecido por sua notável história – intimamente ligada à de Fritz Perls – e por sua influência sobre um grande número de centros terapêuticos em todo o mundo. Em seu começo, durante a época dos anos sessenta, o Instituto pretendia implementar uma idéia que Aldous Huxley descreveu como de ministrar as “humanidades verbais”. Isto requeria fazer  acoplamentos de várias contribuições ao desenvolvimento humano que naquele momento haviam surgido independentemente, como as diversas disciplinas orientadas para a consciência do corpo, trabalhos em grupo orientados para a consciência emocional, aplicações da arte ao conhecimento de si, etc.

Através de Esalen conheci pessoas que foram importantes em minha vida, como Perls e Simkin, Alan Watts e Joseph Campbell, porém o estímulo deste centro inovador também foi determinante para que concebesse criar uma escola que, diferente de Esalen, lugar onde se recorria a atividades breves, oferecesse um currículo tal – um conjunto de disciplinas complementares que os estudantes pudessem integrar em uma síntese original.

Isto começou com meu regresso ao Chile, depois de Esalen, e mesmo que a atividade que desenvolvi não chegasse a ter um nome local, o catálogo de Esalen se referia a ela com a expressão Esalen-en-Chile, e quando regressei posteriormente aos Estados Unidos, este trabalho constituiu a forma germinal do que tive que realizar mais tarde ali, assim como a base vivida do livro que naquele período escrevi (A Única Busca) acerca de metodologia comparada e aspectos subjacentes a muitos caminhos espirituais e terapêuticos.

Ao regressar aos Estados Unidos, Esalen não só me convidou como gestaltista, mas me deu a liberdade de prosseguir minhas iniciativas experimentais e, foi nesta época, que mais vivamente senti que convergiam em meu trabalho as influências recebidas como buscador com aquelas recebidas no campo profissional. Tomou especial relevo em meu trabalho a combinação entre o terapêutico e a meditação – o que naqueles tempos era novidade, e particularmente novo era o fato de que não se tratava de uma simples justaposição de meditação e psicoterapia, mas de um trabalho de integração entre ambos: exercícios interpessoais através dos quais se pudesse levar a atitude meditativa a situações de comunicação verbal.

Porém tudo isto foi interrompido por mais de um ano por uma experiência que posso descrever como a principal peregrinação de minha vida – quando deixei minha casa, meu trabalho e meus planos para reunir-me com um mestre espiritual então desconhecido, em quem reconheci um vínculo com a misteriosa e remota tradição espiritual que tanta influência teve sobre mim durante a adolescência através de Gurdjieff.

O que começou como um projeto pessoal, transformou-se em uma nova escola – pois ao perguntar a Oscar Ichazo (assim se chama o referido mestre) se poderia estender um convite semelhante a alguns amigos (originalmente John Lilly, Ram Das, Stanley Keleman e John Bleibtreu), o projeto despertou um insuspeitado interesse em outros e terminei viajando ao oásis de Azapa (proximidades de Arica no extremo norte de Chile) em companhia de mais de quarenta companheiros, muitos deles do ambiente de Esalen.

Dizer que a experiência foi para mim de profundo impacto espiritual seria pouco, pois constituiu um verdadeiro nascimento para um nível de consciência previamente desconhecido e o começo de um caminho de transformação profunda sem volta. Naturalmente, isto veio a se refletir em meu trabalho posterior, para o qual tudo até então me pareceu que havia sido uma simples preparação.

Durante alguns anos este trabalho se concentrou em um grupo de umas sessenta pessoas (em Berkeley) e tomou a forma de uma contínua improvisação mais que a implementação de um programa premeditado. Com o tempo, entretanto, foi se cristalizando um programa propriamente e, para sua realização, tive a sorte de contar com a colaboração de mestres notáveis como do Rabino Zalman Schachter, Dhiravamsa, o tântrico Harish Johari e Ch’u Fang Chu – discípulo do último patriarca taoísta, que naquele tempo chegou na Califórnia, vindo de Taiwan.

Surgiu assim, outra nova escola, e quando foi necessário dar-lhe um nome (em motivo da constituição de uma corporação educativa sem fins lucrativos) chamei-a SAT em tripla alusão à palavra sânscrita para SER e Verdade, às iniciais de Seekers After Truth (Buscadores da
verdade) e (através do simbolismo fonético) a uma visão tripartida da mente e das coisas que transcorrem através do cristianismo esotérico transmitido por Gurdijeff e Ichazo e caracteriza minha própria compreensão da vida psíquica.

Assim como meu trabalho no Chile teve como resultado a forma germinal do que vim a realizar mais tarde nos Estados Unidos, meu trabalho nos tempos do programa SAT norteamericano resultou na forma embrionária do que uns quinze anos atrás vim a executar na Europa. Isto começou com o convite de realizar um curso de verão orientado para a “formação pessoal e profissional” de psicoterapeutas, com o formato de três sessões (uma por ano) com um mês de duração cada; porém com o tempo o formato do curso reduziu-se paulatinamente e sua forma atual consta de três módulos de dez dias.

A forma como um módulo de três meses se transformou em outro muito mais compacto, de modo algum poderia ter sido antecipado na forma teórica; somente a evolução de uma prática no tempo permite a paulatina expressão da criatividade no curso de um processo emergente. Assim, ao longo de mais ou menos quinze anos e, graças à evolução destes cursos (mais práticos e vivenciais do que teóricos), parece-me que acabou de tomar forma algo que espero que possa servir como um fermento transformador no mundo da educação, depois de haver ajudado um grande número de terapeutas em diversos países.

Quero agora lhes apresentar brevemente o conteúdo do currículo, predominantemente vivencial que, realizado com a ajuda de valiosos colaboradores e refinado progressivamente através dos anos, está tendo resultados tão satisfatórios.

A estrutura fundamental (que é algo como a bandeira sob a qual trabalhei desde sempre) é a de unir a meditação com a terapia, o que não é tão novidade agora como quando introduzi esta prática em Esalen, há mais de trinta anos. Apesar do que digam muitas escolas espirituais, que consideram o terapêutico irrelevante, e as escolas terapêuticas que consideram o espiritual como ilusão ou evasão da realidade (“ópio do povo”), creio que o âmbito interpessoal da mente e o âmbito transpessoal ou espiritual não são senão aspectos de um fenômeno único – e a cura ou reeducação emocional (que não é outra coisa senão o restabelecimento de nossa capacidade amorosa) não é nem inseparável da realização espiritual nem dispensável na Grande Viagem da Alma.

A combinação da meditação (o velho caminho contemplativo) com a psicoterapia (o “yoga interpessoal” que constitui o principal aporte de nossa cultura para o caminho de realização) tem uma potência muito particular. Quando digo meditação, não só me refiro a uma dimensão muito grande, mas a uma realidade multifacetada, pois a meditação reúne em si muitos elementos, alguns dos quais são exaltados preferentemente em uma ou outra cultura.
Minha maneira de ensiná-la, como se verá, é integrativa, ainda que coloque em relevo a contribuição do budismo.

Falar de meditação no sentido mais amplo da palavra, praticamente coincide com falar de espiritualidade, já que as diferentes técnicas de meditação conhecidas constituem os principais exercícios espirituais da humanidade. Porém quando se fala de espírito e de espiritualidade às vezes se tem uma idéia muito vaga ou fragmentária do que são, e um conhecimento amplo da meditação pode ser a melhor forma de preencher esta lacuna em nossa educação, pois a dimensão espiritual da vida, como a meditação, é multifacetada, e cada um dos aspectos desta última constitui uma via de acesso a essa profundidade da mente à qual às vezes se alude simplesmente como “consciência superior”.

Quando no mundo ocidental se afirma que é importante a consciência espiritual, o que aproximadamente se quer dizer é que é importante o sentimento do divino, ou uma orientação para o divino. Como resultado de uma confusão entre a vivência do divino e a ideologia ou mera crença, entretanto, assim como da crescente secularização das crenças, pode-se dizer que o ideal espiritual assim concebido perdeu atualidade, e que as formas tradicionais de oração são consideradas por muitos como um resíduo supersticioso do passado. Por isto, parece-me importante resgatar o aspecto vivencial do divino, que não depende de ideologia alguma nem de uma visão teísta das coisas; sua essência é o sentido do sagrado, que se cultiva através de um tipo de meditação em que se dirige a atenção para conteúdos simbólicos que têm por objeto a evocação de um valor supremo. (Mesmo que tal valor supremo não se embase propriamente no âmbito de objetos ou qualidades, podemos dizer que pode ser projetado sobre imagens, sons, cores e inclusive conceitos – tais como o eu, o nada, a consciência suprema ou o divino).

Porém, por intrínseca que seja a capacidade sacralizante para a maturidade espiritual e desejável que seja o “reencantamento do mundo” através de seu cultivo, não devemos confundir o sentimento do sagrado, e menos a intuição de uma divindade transcendente, com o espiritual, pois estas constituem facetas ou manifestações do Espírito. Igualmente relevante para a consciência superior é a aprendizagem implicada por uma forma de meditação onde a pessoa, aparentemente, faz o contrário da evocação da sacralidade, pois não dá atenção a conteúdos simbólicos, mas ao sensorial, e em vez de gerar uma experiência do misterioso valor supremo que envolve o mundo das coisas sem lhe pertencer, dirige seu empenho para uma percepção simples ou pura do “aqui e agora”, como é típico do budismo Thevarada.

Em ambos os casos, a meditação guarda relação com a orientação da atenção. Ela pode apontar para os “dados imediatos da consciência” de que falava Bergson (o que toco, o que vejo, o que escuto, as emoções, as sensações corporais do momento) cujo conjunto podemos considerar a superfície da consciência (e é sumamente importante que possamos recuperar a capacidade de contato com o imediato que tivemos quando crianças e que talvez perdemos ao estarmos demasiado imersos em nosso mundo simbólico), ou até a profundidade da mente, que é assento das vivências do ser, do eu e do divino. Já que esta profundidade da mente não é acessível à consciência ordinária, todavia é evocada (ou invocada, às vezes) através do tipo de meditação já referido, em que se apela para a concentração no material simbólico, que serve para o desenvolvimento da imaginação criativa e a evocação de significados – e cujo fruto característico é a experiência da sacralidade.

Estes dois aspectos da meditação constituem aspectos complementares da vida em geral e convém observar como se fazem particularmente presentes na psicoterapia, sem que isto signifique que sejam mais relevantes no terapêutico que na educação. Bem sabemos que um aspecto importante da terapia é precisamente o de recuperar a capacidade de “presença” ou de estar no “aqui e agora”, como tão freqüentemente se diz desde os tempos de Fritz Perls.

Hoje em dia se recorda Perls como o criador de um sistema terapêutico, porém, não se sabe que foi uma pessoa de estatura profética quanto ao impacto que exerceu sobre a sociedade de seu tempo; pode-se dizer que foi o profeta do aqui e agora, que através de seu impacto pessoal fez sentir àqueles que o acercavam que havia algo como um caminho do estar presente, uma via de desenvolvimento pessoal que passa pela capacidade de pôr-se na atitude de que o passado já não existe e o futuro, todavia não existe (até agora não fomos tão fundo a ponto de começar a duvidar também do presente). Se adotarmos a atitude de tomar o presente como a única coisa que existe, isto leva a um aprofundamento da experiência do momento, mais remota
e por sua vez mais rica do que estamos acostumados a crer. Isto nos parecerá como se tivéssemos perdido em boa medida tanto a capacidade de tomar contato com a experiência do momento como de admiti-la ou confessá-la. Quantas vezes, no curso de uma conversação, não nos sentimos aborrecidos, molestados, descontentes com o que se passa, sem saber como sair de uma situação quando a saída estaria em poder simplesmente dizer: “Neste momento, não gosto do que está se passando”; ou “Não sei o que está se passando, mas não gosto”. Só esta liberdade de falar da experiência do momento, apesar de vago, mudaria o rumo da conversação. Porém não sentimos que está entre os cânones da vida social falar do que se passa no instante, ou, se começamos a explorar o assunto, encontramos muitas dificuldades.

É precisamente a tomada de contato com o presente, junto à comunicação da experiência presente, o que mudou o espírito das terapias contemporâneas quando começou a fazer parte delas. Antes, a psicanálise havia convidado muito à reflexão sobre o passado, sobre o que se passou na infância da origem dos problemas psicológicos. Já com Reich começou-se a observar mais o que acontece no presente, e Perls foi quem pôs ainda mais ênfase nele, chegando a propor que basta o indivíduo trabalhar com o presente para que recupere a capacidade e o direito de sentir o que sente, de saber o que sente, de saber o que pensa, de saber o que está fazendo e de dar-se conta do óbvio. Porém assim como é importante essa recuperação da capacidade de experiência, podemos dizer que a patologia descansa nesta perda da capacidade de saber o que sentimos, e o que chamamos inconsciente descansa neste não ter direito de saber o que se passa em nós, que por sua vez vem ao lado de nos tornarmos cúmplices de uma mentira social.

Porém, assim como o que medita nem sempre dirige sua atenção para a experiência do momento, também no mundo do terapêutico, que se move na linguagem, não só é importante a recuperação do simples presente. Também é importante a recuperação da dimensão mágica da vida e, quando se fala do transpessoal em psicoterapia, em grande medida tem a ver com a recuperação disso que nos trazem as concepções religiosas do mundo, desdenhadas pelo cientificismo de uma psicologia nascente: os ensinamentos espirituais, os mitos e os contos de fadas, que sendo como dedos que apontam para a lua, não devem ser confundidos com a própria lua. Neles se recorre ao simbólico para ir além do simbólico – ao centro da mente em si – para evocar algo que transcende os conteúdos específicos da mente e que podemos conceber como a própria consciência, a essência divina da mente e a fonte da sacralidade.

Afirmei que o desenvolvimento espiritual é multifacetado e que tão relevante para este é o cultivo do sentimento religioso, como o cultivo da atenção para a realidade imediata, que tão pouco espiritual parece a partir de uma perspectiva cristã tradicional. Outra via de acesso para a maturidade espiritual (que introduzimos no segundo  módulo do programa depois de haver começado pelo vipassana), é o que se vê representado por formas de meditação em que se procura deter a mente para transcendê-la. Isto se consegue, por sua vez, através da
concentração.

Os ensinamentos tradicionais de diferentes culturas nos dizem que só quando a mente se aquieta pode refletir algo que está além dela mesma. Necessitamos inibir nossa mente passional e as vozes interiores que vêm do egóico, inibir nossas necessidades neuróticas e aprender assim a deixar o pensamento em um pacífico silêncio.

Ainda mais, se a meditação é saber parar quieto, também é certo que é o contrário; ou melhor, o complementar: deixar a mente fluir.

Existem várias complementaridades na mente, e a  meditação só pode ser explicada de forma paradoxal. É como ter um pé em cada aspecto do paradoxo para colocar a cabeça em outra dimensão. Assim como constituem uma polaridade as práticas em que se dirige a atenção para a superfície da mente ou, alternativamente, para sua misteriosa profundidade (através de representações simbólicas), assim ocorre com o cultivo da quietude e aquele aspecto da meditação que consiste em uma educação da espontaneidade interior: o deixar que a mente vá aonde quiser, afrouxando seu controle voluntário limitante. Claro que o paradoxo é tal, que quando alguém afrouxa o controle de seus próprios processos mentais, é provável que estes se aquietem; e também o contrário: se alguém sabe realmente ficar quieto ocorre algo análogo como deixar-se ir em um barco e deixar de remar: a água o leva. E se alguém se deixa levar, as correntes mais sutis e profundas do próprio ser começam a se fazer sentir. E assim como quando se calam os alunos na sala de aulas pode-se escutar o que diz o professor, também dentro de si se as vozes pequenas se calam, pode-se ouvir uma voz que está em outro nível. E vice-versa: quando se manifesta nossa mente profunda, é mais fácil calar-se. Isto pode levar inclusive a um momento solene em nosso desenvolvimento: quando se expressa um novo nível de  vida em nós e começa a morrer dentro de nós o que então nos parece como banal ou trivial.

Estes dois aspectos da meditação – a quietude e a espontaneidade – têm a ver com a ação e suas respectivas consignas, podem se comparar às luzes vermelha e verde do semáforo, com seu significado de deter-se ou avançar. Assim, tanto a quietude como a espontaneidade são aspectos da vida que merecem ser apreciadas e cultivadas, e são, também, componentes da psicoterapia.

Pode-se dizer que muitas das teorias da psicoterapia formuladas pelos originadores das escolas tradicionais giram em torno de algumas idéias mais ou menos certas, porém não chegam a proporcionar uma explicação universal. Se buscarmos uma teoria abrangente  transistêmica da psicoterapia, certamente um dos princípios gerais que encontramos é precisamente o cultivo da espontaneidade profunda, o deixar-se levar. Ainda que se trate do psicodrama de Moreno, que falava explicitamente do cultivo da espontaneidade, da associação livre da psicanálise ou de grupos de encontro, obviamente é isso o que entra em jogo: desestruturar para que, ao romper as formas mais superficiais do pensamento e da comunicação se manifestem estruturas mais profundas, e possam assim aflorar as verdades menos óbvias. Isto é especialmente aparente no caso da Gestalt, que é uma importante manifestação do espírito dionisíaco do mundo contemporâneo – desse espírito que implica na fé no espontâneo e natural, e que Nietzsche proclamou como a única salvação possível de nossa cultura ocidental (tão desvitalizada e desumanizada por efeito de um milenar autoritarismo religioso e sua “moral de escravos”). Além de ter um apreciável componente gestáltico, o programa SAT inclui dois elementos que se prestam especialmente para a educação da espontaneidade: um conjunto de exercícios psicológicos baseados na associação livre de idéias (que descrevi em meu livro Entre Meditação e Psicoterapia), e uma disciplina nova surgida da dança: o “movimento autêntico”, ensinado originalmente por Mary Whitehouse.

Assim como contrapus o “pare” e o “siga” da meditação, e descrevi uma polaridade entre os gestos interiores de verter a atenção para a profundidade sagrada da mente ou até os conteúdos concretos desta, podemos compreender a dimensão afetiva da mente (não menos relevante para a meditação) em termos de uma complementaridade. Muitas formas de meditação têm como assunto de base o desapego: um dar um passo atrás, desidentificando-se do que está se passando, sentindo ou desejando. Estamos nos tomando demasiado a sério, pode-se dizer, estamos demasiado imersos em nossa dor ou em nossas preferências, em nossas opiniões e especialmente em nossas cicatrizes – quer dizer nos melindres do que nos aconteceu alguma vez e que, todavia, recai sobre nós como uma sombra ou como um fantasma, separando-nos do presente. O que os orientais chamaram Karma não é outra coisa senão o peso do passado sobre o presente (que não precisa necessariamente ser de outras vidas). Em vista do apego que caracteriza nosso estado habitual (e muito mais as perturbações emocionais) necessitamos dar um passo, às vezes em forma de humor, às vezes simplesmente de forma serena. Naturalmente tal “atitude filosófica”, característica da sabedoria, pode ser alcançada com o tempo através da experiência da vida, porém é parte intrínseca de certas práticas de meditação cujo fruto é o que propus chamar uma “indiferença cósmica”.

Por mais que seja um ideal da vida chegar a uma atitude amorosa, não são incompatíveis o amor e o desapego; e não só não são opostos, como também constituem uma misteriosa complementaridade: é mais fácil a chegada ao amoroso se somos capazes do desprendimento, pois não se pode dar quando se está demasiado apegado ao que se é ou ao que se tem. E é também difícil conseguir o desapego sem uma atitude generosa, sem entusiasmo, amor à vida, amor ao outro, amor a algo. Esta complementaridade é similar à da vida e da morte, que tão entrelaçadas aparecem em certas obras literárias.

Se a terapia tem que ver mais com o pólo do amor, a meditação aponta mais ao desapego, porém também é certo que, tanto na teoria da terapia como na teoria da meditação, necessitamos considerar ambos os assuntos e compreender sua complementaridade.

Porém, quão distante está de nossa prática educativa a idéia de que o silêncio mental ou a desidentificação das paixões (desapego) possam constituir capacidades fundamentais do ser humano e seu cultivo uma importante via para a consciência espiritual. E quanto mais distantes estamos de levarmos a sério essa capacidade de entrega, de sintonia com a profundidade da vida, de acordo com o todo! Hoje em dia apenas se propõe combinar a instrução com uma “educação dos valores”, porém na prática só se traduz, no melhor dos casos, em uma valoração de tais valores. As capacidades que aqui proponho como facetas essenciais da vida espiritual requerem, pelo contrário, muito mais que entusiasmo e retórica: cultivam-se através de uma prática transformadora e requerem a presença de guias que, através da disciplina correspondente, tenham chegado a encarná-las.

Outro tanto se pode dizer do aspecto da meditação que se orienta para o desenvolvimento da capacidade sacralizante, que parece haver se tornado irrelevante em nosso desencantado mundo pós-moderno. Acaso então os gênios religiosos da humanidade foram meros sonhadores ao nos recomendar o amor a Deus como o mais importante dos preceitos? Suspeito que a deterioração coletiva da consciência seja resultado de nosso espírito excessivamente mercantil, ao que não convém que se invoquem valores que possam competir com as ganâncias.

Porém deixo aqui o tema da meditação e passo para a consideração do elemento terapêutico neste currículo de desenvolvimento humano que estou propondo como complemento para a atual formação de educadores. Ao anunciá-lo como um currículo (suplementar) de
“autoconhecimento, reeducação interpessoal e cultivo espiritual” já aludi implicitamente ao terapêutico através de dois fatores intimamente conexos: o do conhecimento de si ou insight, e o de promover uma mudança voluntária nas relações humanas. E assim disse que no programa SAT se combinam meditação e psicoterapia, no entanto, é mais preciso dizer que nele se combinam a meditação, o autoconhecimento e a reparação interpessoal.

Começo por explicar o referente ao autoconhecimento, que constitui o objetivo das assim chamadas psicoterapias de insight ou “psicoterapia profunda”.

O autoconhecimento foi reconhecido desde sempre como uma via de transformação. A ele professamos certa veneração coletiva ao “Conhece-te a ti mesmo” que tanto associamos com a figura e missão de Sócrates e com o Oráculo de Delfos; porém nisto somos coletivamente hipócritas, pois caso contrário o autoconhecimento teria lugar fundamental em nossa prática educativa.

Os que sofrem psicologicamente, quer dizer, os que não podem desconhecer seu mal emocional, descobriram que necessitam do autoconhecimento para corrigir seu estado disfuncional e a necessidade de cura coletiva alimentou o desenvolvimento do novo caminho de transformação que é a psicoterapia moderna.

Enquanto que as escolas espirituais tradicionais abordaram a superação do ego através da prática da conduta virtuosa e da contemplação espiritual, a psicoterapia espera em primeiro lugar que a transcendência dos condicionamentos infantis sobrevenha através da compreensão de si mesmo. E ainda que se possa argüir que a psicoterapia não trouxe tanta luz ao mundo como as grandes religiões com seus santos e profetas, não se pode desconhecer sua contribuição, formidável e talvez indispensável para o nosso tempo.

O empreendimento de encaminhar-se para a compreensão de si mesmo compreende diversas facetas:
1. – A tomada de contato com a própria experiência no aqui e agora, que implica não só na capacidade de aceitação e reconhecimento da própria experiência que se cultiva na prática da meditação (e especificamente com a técnica do vipassana), mas numa educação da capacidade de ser testemunha de si mesmo, quer dizer, de viver o mais conscientemente possível em lugar de andar pela vida “no piloto automático”.
2. – A retrospecção, quer dizer, a tomada de contato, através da recordação, com a experiência passada. Tal clarificação retrospectiva é estimulada e facilitada, por sua vez, pela expressão, seja através da escrita ou da comunicação oral. Em nosso programa, põe-se a escrita a serviço da compreensão da própria vida, por um lado, e, por outro, a comunicação oral sistemática, através da associação livre em um contexto meditativo, serve para o esclarecimento e análise das experiências cotidianas.
3. – Outra faceta do autoconhecimento é a compreensão da experiência do momento no contexto da experiência total. A compreensão de si mesmo vai além de saber o que se sente e o que se pensa em um momento determinado: o que na psicoterapia se chama insight, implica na organização de nossas observações de nós mesmos em uma configuração coerente, o que implica entender, por exemplo, os padrões repetitivos em nossa vida relacional, assim como a relação de nossas experiências presentes com as do passado. Implica, também, entender nossa personalidade e como ela influi em nossa vida. O maior estímulo para a compreensão de nós mesmos nos é proporcionado pelo diálogo com quem, em virtude de seu próprio autoconhecimento, é capaz de entender o que nos sucede. No programa SAT este diálogo tem lugar no contexto de diversos exercícios psicológicos interpessoais e em laboratórios terapêuticos com gestaltistas e outros profissionais.
4. – A tudo o que disse deve agregar-se um componente adicional do processo de autoconhecimento, como é a clarificação da compreensão através de formulações teóricas ou mapas de referência. Cada escola psicológica interpreta as experiências do indivíduo a partir de uma teoria algo diferente, e aquela na qual nos apoiamos não são nenhuma das conhecidas no mundo acadêmico, mas uma versão da psique desenvolvida a partir de uma inspiração esotérica da Ásia central.

O mapa psicológico mais satisfatório e esclarecedor que conheci até agora não é nenhum dos propostos até hoje no campo da psicologia acadêmica, mas um que nos chegou de uma tradição esotérica asiática, que desenvolvi no que chamo “Psicologia dos Eneatipos”. Refiro-me à aplicação do Eneagrama ao estudo da personalidade – algo que até agora encontrei pouca ressonância no mundo profissional, talvez porque a abundante literatura produzida pelos divulgadores deixa tanto a desejar que o entusiasmo popular pelo tema é interpretado pelos acadêmicos como sinal de mediocridade.

Foi Gurdjieff quem introduziu o Eneagrama no Ocidente, e quem quiser saber mais sobre seu pensamento a respeito, pode encontrar algo em um livro muito interessante de um jornalista russo da época – Ouspensky – intitulado Em Busca do Milagroso.

Gurdjieff constituiu uma das influências principais em minha vida, mas as aplicações psicológicas do Eneagrama foram algo que aprendi com um boliviano a quem  mencionei a propósito do meu ano de peregrinação em Arica: Oscar Ichazo, que sob o nome de protoanálise apresentou ante o colégio de psicólogos do Chile, em 1969, um conjunto de noções nas quais se
pode reconhecer a continuidade com uma tradição cristã muito antiga, da qual a doutrina dos pecados capitais é um eco; há muitos séculos o que constituiu uma psicologia prática no tempo dos Pais do deserto e hoje em dia sobrevive como dogma da Igreja, perdeu-se como
conhecimento vivo no Ocidente.

Em nossos dias podemos reformular a doutrina dos pecados capitais dizendo que, por termos todos sofrido durante a infância em maior ou menor medida uma frustração amorosa, desenvolvemos uma maneira específica de tentar conseguir o que nos faltou; e assim, por exemplo, desenvolvemos uma paixão pelo aplauso, pelo  conhecimento, pela intensidade, pelo que quiserem, etc. Enfim: aprendemos muitas manobras para conseguir amor, e não conheci melhor mapa para entender a variedade destas manobras do que o Eneagrama, coerente com aquele de que se utilizava Dante ao classificar os pecadores no inferno ou no purgatório. Em alguns a dinâmica fundamental é o orgulho, em outros a inveja, etc., e existem psicólogos que se interessaram principalmente por uma ou outra destas emoções básicas (como Melanie Klein com a inveja; Karen Horney, que fez do orgulho o centro de toda a compreensão do psíquico; ou Freud com a angústia e o medo). Porém o Eneagrama permite ter uma visão global dos tipos humanos e se começa a perceber que não existe uma psicologia, mas nove; cada uma com sua loucura implícita, com suas idéias disfuncionais e com suas necessidades particulares exageradas.

Passo agora para o tema da educação interpessoal, que mais que nenhum outro aspecto da educação, implica necessariamente no re-aprender, na reparação relacional, no trabalho encaminhado para a mudança de conduta.  Podemos dizer que, como no caso da compreensão de si mesmo, esta reeducação vai mais além de fórmulas ou técnicas, constituindo um aspecto potencial de cada momento de nossa vida.

No currículo do SAT, um componente especialmente importante deste propósito de reparação é o trabalho encaminhado para a recuperação do vínculo amoroso original com os pais. Desenvolvi este trabalho muitos anos atrás, inspirado pelo que então levava a cabo de forma individual um clarividente norte-americano, Robert Hoffman, que por sua vez, refinou o processo grupal proposto por mim, originando o assim chamado “Processo Hoffman da Quadrinidade”.

Já que incluí neste livro o capítulo escrito anos atrás acerca de Hoffman e de seu enfoque terapêutico na “A Agonia do Patriarcado”, chamando a atenção sobre o potencial desta notável contribuição para a reeducação da capacidade amorosa para uma educação futura, só direi aqui que o processo que implementamos no programa SAT não é idêntico ao que oferecem os representantes do Instituto Hoffman Internacional, mas as idéias básicas são as mesmas. Já que o vínculo amoroso com o pai e a mãe se vê afetado na maior parte dos indivíduos, pela interferência de um ressentimento, consciente ou inconsciente que requer ser sanado e isto, por sua vez, requer a tomada de consciência completa da dor, assim como a catarse da raiva
reprimida. Somente desta forma pode-se pretender chegar, através da compreensão e compaixão, ao perdão e à benevolência espontânea.

Do restante das relações de nossa vida, nenhuma é comumente mais importante que a relação de casal, e as relações amorosas também recebem uma atenção específica no programa SAT através de um curso dedicado ao aproveitamento das dificuldades nas relações de parceria para o trabalho de evolução pessoal. E complementam os trabalhos mencionados aqueles em que se atende à elaboração de outras situações interpessoais pendentes – o que se realiza através de oficinas de Gestalt e do laboratório de psicoterapia integrativa.

O programa oferece suficiente oportunidade de experimentar a terapia gestáltica e de aprendê-la, se há interesse, como um curso de aperfeiçoamento para muitos gestaltistas já formados. Esta ênfase em uma escola determinada de psicoterapia bem poderia parecer arbitrária em uma época em que as escolas de psicoterapeutas se multiplicaram e a Gestalt perdeu a proeminência que teve umas três décadas atrás, porém, por mais que a Gestalt constitua uma de minhas especialidades, creio que a escolha desta modalidade terapêutica (acima da PNL ou da AT, por exemplo), justifica-se plenamente por sua universalidade, sua utilidade para terapeutas ecléticos e, muito particularmente, por sua relevância na educação.

Justamente porque a Gestalt é um meio muito plástico e muito criativo de abordar a vida emocional, já foi eleita como complemento terapêutico mais relevante para a instrução por George Brown, que há décadas atrás foi decano da Escola de Educação da Universidade da
Califórnia em Santa Bárbara. Brown foi fundador, muitos anos atrás (com o apoio da Fundação Ford) de um projeto que chamou Confluent Education (Educação Confluente) no qual se adotou a Gestalt para a preparação de mestres que tivessem, além da capacidade de ensinar, a de haver-se com o que ocorre humanamente no aqui e agora, tanto em si próprios como com os estudantes. Para poder, por exemplo, perguntar a alguém de cara feia, o que se passa, sem medo de não saber o que fazer com a realidade de sua experiência. Isto implica em uma formação (caracteristicamente posta em relevo na Gestalt) que lhe permita entrar em um encontro verdadeiro; de poder fazer um parêntese no processo de instrução quando for necessário atender a realidade afetiva e interpessoal do momento.

Quero sublinhar a grande relevância da terapia Gestalt para a educação assinalando que, quando Perls ensinava nos EUA através do Instituto Esalen, muitas vezes não anunciava suas oficinas como psicoterapia, mas falava de “educação da expressividade”, “educação atencional”,
“educação do estar presente”, etc. A capacidade que a Gestalt pretende educar é tão universal que nem sequer a apreciamos devidamente: saber o que se passa conosco e ser capazes de “estar aqui”. E, não obstante é algo tão difícil que só os buscadores avançados, as pessoas que
já têm um certo caminho andado apreciam devidamente e compreendem cabalmente o que é isso de cultivar o estar presente. Muitas vezes perguntei às pessoas nos grupos com que trabalho “O que você busca?”, “O que conseguiu?”, “Onde está?” E comprovo que só os mais maduros respondem que seu empenho é estar mais presentes.

O laboratório de psicoterapia integrativa a que me referi é um dos aspectos mais significativos e originais do programa SAT, pois através dele os participantes adquirem rapidamente uma capacidade de ajuda que não se apóia em conhecimentos teóricos, mas na experiência, na compreensão de que as capacidades humanas tais como a de escutar, compreender o que se diz e querer o bem do outro. À parte o benefício que isto possa trazer para outros, o exercício terapêutico dos aprendizes ao longo da série graduada de exercícios terapêuticos que compreende este programa prático, resultou um apreciável benefício dentro do próprio grupo, estruturado de tal maneira que cada pessoa recebe terapia de um companheiro e a oferece a outro em uma situação supervisionada. Além do benefício terapêutico que se consegue para cada membro do grupo nesta situação, a experiência deste laboratório – com suas sessões grupais de comentários que promovem um clima generalizado de transparência – contribui significativamente para a formação de uma verdadeira comunidade. E é assim como freqüentemente, ao finalizar o programa, ouve-se dizer aos que compartilham suas impressões retrospectivas que sua vida não será a mesma depois de terem se sentidos tão aceitos, acolhidos, compreendidos ou queridos por seus companheiros.

Este aspecto do programa me parece uma de minhas  contribuições mais inovadoras e surpreendentes por sua efetividade, apesar de que, passo a passo, durante sua elaboração, longe de sentir-me original, apenas tentei formular exercícios inspirados nos aspectos mais universais da psicoterapia. Só ao tomar consciência de que não existe (que eu saiba) um programa tão breve e efetivo, pareceu-me original, e está claro que o centro desta originalidade consiste em que se possa aprender a fazer psicoterapia sem mais que breves formulações teóricas – levando adiante a proposta de Rogers de que os aspectos determinantes na atividade do terapeuta são a empatia, a benevolência e a autenticidade.

A mim parece que a psicoterapia complicou-se muito; mistificou-se muito ao colocar em relevo coisas que não são as fundamentais. E penso que as determinantes fundamentais de uma boa psicoterapia são principalmente pessoais, e não técnicas nem teóricas. Talvez a principal seja que o terapeuta entenda o que se passa com o outro; se o terapeuta entende o que se passa com o outro, não é necessário sequer que o diga, porque isto tem um efeito quase mágico: o outro sabe intuitivamente e se sente entendido.

Também é importante que o terapeuta se interesse pelo bem do outro, que seja benevolente. E também isto o fará sentir, independentemente de que o expresse com fórmulas
do tipo “Sim, estou contigo, te escuto” ou não o expresse; talvez seja de melhor gosto não expressá-lo, quando é um excesso fazê-lo. Não menos importante é a autenticidade; faz-se terapia pela verdade e através de um chamamento à verdade do outro.

Porém estas três coisas – a capacidade do terapeuta de ser autêntico para assim induzir a autenticidade do outro; a capacidade do terapeuta de interessar-se pelo outro; e a capacidade do terapeuta de entender o outro – são coisas que não se cultivam nas universidades. Não se cultivam lendo livros nem se cultivam através de laboratórios  técnicos: cultivam-se através de um processo pessoal e creio que esta é a hora de mudar de orientação.

Enumerei algumas influências que se fazem sentir fortemente no programa SAT – como Gurdjieff, Ichazo, Perls, Hoffman e Rogers -, sem mencionar que boa parte do ensinamento da meditação através dos módulos sucessivos do programa se ajusta às três tradições fundamentais do Budismo: a antiga tradição Theravada (representada principalmente pelo Vipassana), o Mahayana (representada pelo Budismo Zen), e o Vajrayana ou Budismo Tibetano. É justamente a concepção pedagógica da Escola Nyingmapa, do Budismo Tibetano, que inspira o programa de meditação em seu conjunto – desde seu começo com o Vipassana, sua continuação com o Shamata ou pacificação da mente, como fundamento para a indagação vivencial acerca da essência da consciência, só que, tendo sido discípulo de um mestre altamente criativo – Tarthang Tulku Rimpoche –, permitiu-me também certa criatividade no relativo a outros aspectos da meditação (como a visualização, o devocional e o desenvolvimento da compaixão) ao substituir as formas tradicionais por aplicações inovadoras da escuta musical, como bem se poderia esperar das aplicações para a meditação e para a psicoterapia de alguém que foi músico antes de ser médico – o que explica que outro dos componentes que se faz sentir através do programa SAT seja a música.

Seria demasiado longo explicar aqui cada um dos elementos que integram o programa SAT, se bem que alguns dos que apenas mencionei são originais e mereceriam um livro à parte – como, por exemplo, o laboratório de psicoterapia que desenhei não só com um propósito de treinamento, mas como uma forma de configurar um sistema grupal auto-reparador. Outra disciplina que surgiu no desenvolvimento de nossos cursos – como um encontro entre minha iniciativa e a perícia de alguns discípulos colaboradores – foi uma forma de teatro terapêutico que integra tanto o elemento gestáltico como a psicologia dos eneatipos.

Um componente adicional do programa foi o trabalho psicocorporal, cuja essência é a consciência do corpo e que leva tanto à correção postural como à melhora na fluidez do movimento, que abunda em implicações tanto psicológicas como espirituais. Através de muitos anos de experimentação, recorri a elementos muito variados que vão desde o yoga e o tai chi até a eutonia, privilegiando ultimamente o método de Rio Aberto e o movimento autêntico. Também pertence ao âmbito psicocorporal um trabalho desenvolvido por discípulos mexicanos (Chalakani
e Kretzschmer), que combina a técnica do “renascimento” com a regressão a estes estados que Grof propôs chamar “matrizes pré-natais”.

Deixo aqui o comentário acerca dos principais componentes do programa SAT – comentário que naturalmente, não basta para dar uma idéia do que o conjunto gera, ao ser posto em prática, um processo de fecundas interações e, portanto, um sistema vivo que vai além de suas partes. A partir de um ponto de vista diferente, poderia ter falado deste processo como “uma máquina de moer egos”, uma iniciação para um caminho de desenvolvimento espontâneo que jaz em nós mais além de ideologia alguma, ou uma escola viva, cuja essência se encontra mais nas pessoas que ensinam do que num currículo explícito.
Existem aqueles que falaram da escola SAT como uma escola de amor, como um lugar em que se aprende a ser mais humano e mais verdadeiro. Para muitos, significa um descobrimento da dimensão espiritual da vida. Um grande número de participantes deixa para trás velhas maneiras de sentir e de ver as coisas, e sentem que sua vida toma outro rumo. É para a maioria, uma entrada num caminho de transformação e para os mais comprometidos, um atalho considerável do caminho.

Um aspecto importante do Programa SAT é de natureza psicossocial: o grupo de participantes se torna um grupo de verdade no qual cada um pode mostrar-se como é, explorar condutas alternativas e descobrir que é aceito e querido além de seus papéis habituais. Porém o programa SAT não somente é um processo em que as pessoas se sentem aceitas e validadas, pois existe também um forte elemento de confrontação e eu diria que estão bem equilibrados o aspecto nutritivo com a proposta de uma “guerra santa contra o ego”.

Em alguma ocasião convidei um grupo de colegas a compartilhar o que a “experiência SAT” havia sido para eles, e me chamou a tenção a ênfase que deram a como havia sido um presente para os participantes ter o exemplo de docentes que “trabalham sobre si mesmos” ao invés de isolar-se por trás de um rol profissional.

Quando hoje em dia se reconhece amplamente que a psicoterapia depende mais da relação do que da técnica ou mesmo do insight, no fundo do que se fala é da  benevolência do terapeuta, que permite que ele “acolha” seus pacientes de uma forma que seus pais não souberam fazê-lo. Menos amplamente se reconhece o valor terapêutico da autenticidade, que me parece, um ingrediente fundamental desta escola viva.

Observou-se reiteradamente como a prática terapêutica oferecida no Programa SAT interessa e serve tanto para terapeutas de alto nível como a principiantes, e que cada um dos cursos é “quase um milagre” pelo muito que ocorre e pelo muito que se aprende. Parece-me que, efetivamente, assim o é, e considero tal êxito uma confirmação experimental de minha convicção inspiradora: que para ajudar os outros não são necessários longos estudos, mas a experiência da própria viagem interior através do autoconhecimento e do esforço realizado: um treinamento prático vivencial relevante, uma visão clara de certas coisas fundamentais e a capacidade de encontro com o paciente. Pela proeminência desta última na prática educacional que desenhei, falamos às vezes de aprendizagem graças a uma “cura pela verdade”.

Termino com uma consideração acerca de como nosso mundo enfermo e em crise necessita do apoio para a transformação individual: a sociedade saudável se faz com indivíduos saudáveis, e não podemos esperar que a necessidade de auto-realização venha a ser satisfeita mais que em parte pelas vias tradicionais. Faz-se desejável algo assim como uma democratização da psicoterapia ou, mais amplamente, uma educação em como trabalhar espiritual e psicologicamente em si mesmo, e em como ajudar-nos uns aos outros.

Dificilmente podemos esperar um mundo melhor sem mudar nossa educação, tornando-a algo relevante para o desenvolvimento psicoespiritual. E para mudar a educação é necessário injetar algo novo na formação de educadores.

Expliquei como surgiu o Instituto SAT em resposta ao interesse de um grupo de buscadores na Califórnia durante os anos 70, e como renasceu, anos depois na Europa, em resposta ao interesse dos terapeutas. Muitos educadores assistiram aos cursos, porém só ultimamente as instituições começam a se interessar, e isso me enche de alegria, porque me parece haver desenvolvido algo que, através do auspício dos educadores, promete ser de grande utilidade pública; e sonho que meu “invento” possa algum dia contribuir para que tenhamos um mundo mais favorável para os que vêm depois.

Imagino que a maioria estará de acordo que, se queremos um mundo diferente, dificilmente vamos consegui-lo somente com política, ou meramente através do progresso espiritual ou terapêutico de indivíduos isolados. E nem sequer através da formação psicoespiritual independente de mestres: será necessário o compromisso de universidades e o financiamento de programas dirigidos às equipes de docentes de escolas específicas, para que, transformando-se em grupos verdadeiros, cheguem a constituir um ambiente favorável ao exercício de capacidades atualmente desaproveitadas dos docentes, assim como a expressão e livre desenvolvimento dos alunos.

Que isto não acontece agora me é visível pelo fato de que muitos professores que passaram por nosso programa me dizerem que, apesar do grande benefício pessoal que lhes trouxe e das novas capacidades assistenciais adquiridas, de pouco lhes serve o que aprenderam e viveram quando retornam aos seus ambientes de trabalho. E não duvido que muitos demonstraram no curso do trabalho grupal uma grande capacidade de ajuda para o desenvolvimento dos demais; porém sentem que o ambiente das escolas é incompatível com uma expressão plena da humanidade e que não favorece a manifestação de suas capacidades, como se o sistema estivesse lutando com a consciência.



É trágico porque a educação, dentre todas as instituições humanas, deveria ser a responsável por velar pelo desenvolvimento humano. E não só atravessamos um momento histórico em que nosso estancamento psicoespiritual tornou-se crítico, mas, além e, sobretudo, estamos no mundo para florescer e frutificar, quer dizer, para desenvolver nossa consciência.
É de estranhar então, que nosso subdesenvolvimento em matéria de humanidade se expresse num sem fim de distúrbios e sintomas?

Os que leram meu livro “A Agonia do Patriarcado” conhecem minha opinião de que a crise universal que caracteriza nosso tempo, abarcando desde as finanças até a ecologia e a qualidade de vida, é no fundo uma crise pela escassez de amor e sabedoria – o que equivale a dizer um descuido do desenvolvimento. Os educadores parecem albergar muito boas intenções, porém seu afã nos oculta a resistência da instituição à mudança radical. No Chile fui secretário privado de um Ministro de Saúde no começo de minha carreira, e me dei conta do quão fácil é perder-se na política, mesmo com as melhores intenções. Convém ter presente que, assim como existe uma patologia individual, existe também uma patologia do sistema; uma espécie de espírito do sistema, o ego social maligno. E assim como acontece no caso do ego individual, sua destrutividade repousa em uma inconsciência. Como Cícero observava (não me recordo de suas palavras exatas): “Cada senador é um grande homem, porém o Senado em seu conjunto é um idiota.” Assim, pois, e apesar de que muitos políticos tenham as melhores intenções, a política é uma máquina infernal, e nem sequer as melhores intenções bastam para mover montanhas.

Talvez ocorra assim com a educação, não sei. Porém, a inércia institucional que faz da educação um imenso “elefante branco” é maior e, sobretudo, muito mais temível do que se pensa, e o fato de que esta “inércia burocrática” não pareça sê-lo, somente a torna ainda mais poderosa.

Creio que o público em geral e os educadores em especial devam adotar uma atitude revolucionária, pois já não há lugar para outra. Espero que entre todos possamos influir para que as autoridades empreendam outro rumo. A educação serve para o desenvolvimento humano, por muito que se queira usar para outras coisas também, e por muito que a inércia de nossa plutocracia pseudodemocrática exija uma educação para a docilidade automática e para a produção, creio que uma educação para a livre realização de nossas potencialidades evolutivas e criativas pode ser crítica para nossa sobrevivência coletiva.

Mudar a educação para mudar o mundo – cap.6





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